quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A MULHER DA FLOR NOS CABELOS




By Mércia Dantas

Ela apareceu assim, do nada, quero dizer, saindo da padaria, saltitante. Chamou-me a atenção de pronto. Era a própria vida, alegre, sorridente, descendo aqueles degraus como se menina fôra. Não era jovem, deveria ter a minha idade, mais de sessenta. Sorri por dentro e lembrei de como as novelas lançam moda. Ela enfeitara os cabelos semilongos com uma flor igualzinha à personagem da novela das nove: a vendedora de hot dog. E aquele vestido? Nem era época junina, estampado, de cintura marcada, aquela figura ágil e esbelta, com um sorriso largo e traquinas, aquela saia desaguando em farto franzido num toque supremo de feminilidade que não se vê mais nos dias de hoje. Aonde iria aquela mulher da flor nos cabelos? Final de tarde, teria um amante, um namorado? Estaria indo a um baile da terceira idade? Mas, em plena segunda-feira? Sim e porque não? Aquela figurinha exalava felicidade, alegria de viver. Lembro de ter olhado os seus sapatos – comprovando a pesquisa que mulher olha os das outras -, eram sapatilhas pretas, confortáveis, apropriadas à dança. Pena que não tive tempo para conhecê-la melhor. Meteoricamente deixou uma imagem inesquecível e tantas elucubrações. Algumas pessoas têm essa propriedade: de marcar presença, de suscitar situações e mexer com o nosso imaginário. Na verdade, senti alegria por aquela mulher de “idade avançada” e tão menina, tão rápida, indo ao encontro do seu destino, com certeza, muito feliz. E aquela flor...hummm....sei não.

Bsb, 03/dez/2013

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

LURDINHA


By Mércia Dantas

Lurdinha circulou em minhas lembranças de adolescente há pouco tempo. Estudamos na Quarta Série Ginasial do Padre Miguelinho e era alguém bem diferente. Menina pobre, mais do que eu, sapatos rotos, meias e blusa encardidas, um olho meio “troncho” sempre apontando para outro lado, mansa, o andar de uma senhora de idade, lembrava minha avó. E era preta, ritinta, cabelos pichauim, calada, sempre sozinha. E era diferente não pela cor, não pelos cabelos, não pela simplicidade, mas por seus ideais: queria ser professora, não matava as aulas. As demais amigas, muitas da Cidade Alta, algumas ricas, viviam o mundo de frivolidades da juventude, as novidades da moda, os namorados, a descoberta da sensualidade, os decotes e roupas coladas como a querer mostrar os peitos empinados pelos soutiens emborrachados. Lurdinha não tinha soutien, usava combinação, com certeza feita em casa, como era comum na época. Nas rodas das fofocas elas estavam sempre lá, Lurdinha não. Nunca era chamada, era como se fosse um ser invisível, como se não existisse. Hoje eu entendo bem o que é isso, lendo textos de amigos. Levava broncas do chato professor de Desenho Geométrico que não admitia que sentássemos encurvadas e arrastássemos cadeiras, muitos menos “rebolar” borrachas de uma aluna para outra, coisa que a Lurdinha fazia sempre. Chamada de atenção na hora e Lurdinha era a preferida dele, para censurar. Coitada, já sentava no final da sala, ninguém conversava com ela, nem eu, apesar de lhe dispensar uma certa ternura.  Chegou o final do ano e eu era craque em desenho, Lurdinha não. O tempo regulamentar era de 1h30 e Lurdinha sentou-se ao meu lado e em dado momento, olhou para mim, com aqueles olhinhos tortos, como a suplicar: me ajude! Num impulso, falei baixinho, me dá tua prova. Troquei com a dela e fiz todos os exercícios, destrocamos e a sirene tocou. Não consegui fazer a minha, fui reprovada. A escola tinha mudado o tempo para as provas e não nos avisaram. Mudaram para apenas 40m e não mais 1h30, tempo suficiente para fazer as duas. Lurdinha passou, eu tive que repetir o ano. Nunca mais a encontrei, não sei da sua vida. Hoje eu gostaria de saber dos caminhos daquela menina, se ainda vive. Tem nada não Lurdinha, aquele professor merecia, você merecia passar. Afinal, quantas privações você não deve ter passado pra frequentar aquela escola, quanto chão não terá andado pra chegar lá, seus sapatos denunciavam isso, a gente nunca ligou. A gente nunca pensou que talvez aquele leite americano com pão da merenda fosse o único do seu dia. A gente nunca lhe viu e hoje quero te pedir perdão, não porque resolveram comemorar um dia que sou totalmente contra, mas porque lembrei de você e faz tempo que queria registrar isso, que você foi importante na minha vida e que teria ficado mais gente e mais humana se tivesse sido sua amiga e trocado figurinhas como fazia com as outras. Hoje penso que talvez eu olhasse pra você e visse a mim mesma, apesar de bem vestidinha e tudo o mais. Eu também fui “mal vista” na própria família, por uma avó loura de olhos azuis que nunca me deu um abraço, pelo irmão que me chamava de “Nega Zulu” quando brigávamos, fui a “lerelere” da casa, serviços pesados todos eram-me incumbidos. Não me ensinaram música, meu maior sonho. Acho que de tanto olhar para o céu e conversar com Deus, acabei ficando branquinha como aquelas nuvens que tanto apreciava desde meus tempos de menina. Ou será que fiquei azul? Sei lá, na verdade isso nunca importou, nem importa. Mas que eu senti uma saudade danada de você hoje, eu senti. Um beijo Lurdinha!


Bsb, 20/11/2013 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

PRIMAVERANDO



By Mércia Dantas


Não tenha pressa, não corra, não morra.
Há uma estrada, há um lugar, uma saída.
Se olhar pra trás, lembre só dos sorrisos,
das flores deixadas em botão.
Abriram, maduraram, exalam perfume, inspire.
E aspire novos sóis, novos horizontes,
enxergue as novas cores, outros amores.
Respire, conte, foi longo o tempo.
Mas valeu a pena ter chegado...
Em plena primavera!


Bsb, 27/setembro/2013

terça-feira, 23 de julho de 2013

SARA, SARA


By Mércia Dantas

Sara, sara nossa terra
Sara, sara nossa vida
Sara, sara as feridas

Neste céu de azul anil
A cobrir a nossa face
A falar da nossa dor

Somos os imperadores
Que buscamos nossas cores
Somos jovens, não atores
Não lutamos, só por nossos amores

Sara, sara meu coração
Por não aguentar mais emoção
Não me basta chamar teu nome
Quero teu amor ganhar

Vida igual pra toda gente
Chega de usar as máscaras
Caiam todas, sem cessar;

Nosso povo é nossa gente
Pátria, pátria, vil espera
Nossos velhos, indigentes,
Sem futuro, sem amparo,
Pátria, pátria, indecente.

Sara, sara nossa terra
Sara, sara nossa vida
Sara, sara as feridas
Neste céu de azul anil.


Bsb, 03/11/2010.

terça-feira, 16 de julho de 2013

FEBRE

By Mércia Dantas

Adentro meu coração,
tento achar o bicho paixão,
o mal da solidão,
entro em colisão.

Mil volts me queimam...
Quero ir a algum lugar.
Não chego a nada,
não sei se sobrevivo.

Choro... muitas lágrimas...
Mas não inundam o todo,
não aplacam o fogo,
não abaixa a febre.

Entrego-me  à música ambiente,
meu corpo ritmado segue e sente
toda a dor, toda a chama.
Um amor, um amor, meu ser clama.

Uma razão pra estar,
uma razão pra cantar,
nascer de novo, renascer das cinzas.
Alçar vôo, com  ou sem febre.

Bsb, 23/01/2010


segunda-feira, 15 de julho de 2013

SUPERSTAR


By Mércia Dantas

Arrebata-me a atenção
este teu olhar oculto,
de cores indefinidas,
delineando-se conforme o ambiente,
verde, castanho, dourado, sei lá...
não importa, são lindos.

Atiça-me a curiosidade
perceber teu corpo
sob o cuidado uniforme,
imaginar teus pelos
roçando minha pele,
numa dança selvagem
e quase louca de desejo.

Lembra-me você
todo e qualquer superstar:
Fred, Frank, alguém que já perdi,
até um amor de minha infância.

Deixa-me você
sem saber, e até talvez saiba,
sem sono, sem fôlego, demente.

Deixa-me em brasa,
sem idade, sem medo,
sem limites e sem hora pra sonhar.

Vigilante me torno
dos meus sentimentos
e me encontro apenas mulher,
pronta, fêmea total pros teus abraços.

E fico na espera de você,
de alguém como você,
de uma voz que me acaricie como a sua.

É a sua voz e tão somente que me prende
a você, como uma loucura,
a voz que mexe com as entranhas
e me faz querer mais e sempre mais
te ouvir, até imaginar muito mais...

Deixas-me em febre, quase doente.
Deslizo minhas mãos pelo corpo e as adentro.
Imagino sendo as tuas, enlouqueço.

Saio do transe e vejo que falta você,
Fico à procura e não encontro:
somebody to love.... a superstar...
Your voice…

O bombeiro, o fogo, a água,
o fim, o engano, a solidão... de novo.

Coloco o disco, escuto Pink,
The Final Cut, as letras do Roger,
.... I had a dream... I had a dream…
Sinto sua dor, sua solidão interior,
your voice, quase surto em novo transe.

Tudo se mistura como num ato final e louco:
Carmina Burana, Bohemian Rhapsody, Cavalgada das Valquírias,
your voice, your voice, não... não… não é a sua... is not.


Bsb, 31/05/2004

quinta-feira, 18 de abril de 2013

A TARDE





By Mércia Dantas
E a tarde vai escorregando...
Como um barquinho suave em águas tranquilas,
compondo uma música doce em cada movimento.
Fico sem palavras, é tudo tão lindo...
Como foram nossos momentos:
alegres e ruidosos, tantas palavras...
E agora, continua sendo...
Mesmo neste silêncio.
E a tarde vai acontecendo...
Contando outras histórias,
não mais de nós dois.

Bsb, 18/04/2013

sábado, 26 de janeiro de 2013

A PROCURADA







Procura-se a amizade perfeita. Pode ser uma amizade nova, uma amizade velha, mas sincera. Basta ser alguém que queira caminhar a meu lado, sem fazer muitas perguntas, sem cobranças. Deve ser humano o bastante para entender que já percorri caminhos, de alguns cansei. Inteligente para detectar que tenho alguns conhecimentos, não me imponha seu lado científico. Conheço todos.  Que não tente competir comigo, já fui atleta, já fui de time de vôlei. Uma amizade pra dizer que tenho um amigo, não pra enxugar minhas lágrimas e que dê boas risadas quando eu disser que não foi nada, apenas um cisco. É bom ter um amigo, que compartilhe as coisas boas da vida, as ruins não precisa, ligo a TV todos os dias, leio jornais. Preciso dessa pessoa que não precise fazer sombra. Não gosto de fantasmas. Prefiro pessoas do meu tamanho. Não precisa pegar na minha mão, já aprendi a andar. Não precisa me chamar de Dona, meus cabelos brancos só precisam de tratamento à base de cremes. Porém, que respeite a minha idade. Mas, por favor, preste atenção, não sou decrépita. Preciso de alguém que sonhe e voe comigo das brincadeiras da infância a Paris. Alguém que mesmo sabendo que sou pobre, reconheça o tesouro mental que tenho e queira acompanhar-me num delicioso mergulho em busca do elo perdido. Ah, e principalmente, se reconhecer em algum tempo que errou comigo, que seja humilde o bastante para pedir perdão. Procura-se!

Bsb, 26/janeiro/2013.

SIMPLESMENTE MARIA



 












By Mércia Dantas
É, hoje é uma data especial, muito especial. Maria, minha mãe, completa 90 anos de idade. Casou aos 14, aos 15, exatamente nesta data, seu presente de aniversário, o primeiro filho: Lívio, que faria 75 anos de idade juntamente com mamãe, não tivesse falecido precocemente, aos 42. Maria, escolhi esta foto dos 54 anos pra te homenagear hoje dia do teu aniversário. E lamento que o AVC que fulminou a saúde há 15 anos e demais problemas decorrentes a impeçam de falar comigo, mas eu quero te dizer mais uma vez:

EU TE AMO MAMÃE! FELIZ ANIVERSÁRIO!!!

Você é a melhor lembrança da minha vida, seus sábios ensinamentos, suas correrias pra dar conta de doze filhos, sua vontade de ver o pai e os filhos sempre no alto, seu bom gosto, sua agonia pela mesa sempre farta, seus bolos fofinhos e tão perfumados de raspas de limão. Mãe querida, não posso falar muito de você, me emociona, afinal já não sou tão mocinha, já tenho 62 anos. Passei a vida inteira ouvindo os amigos, vizinhos e familiares te chamando de Maria de Tonheca. Hoje, tomo a liberdade de dizer que você não é de ninguém, teu nome sempre foi liberdade. Você sempre voou, sempre quis mais, sempre quis antes de todo mundo, sempre correu atrás de seus sonhos. Você sempre foi a rainha. E, como filhos e súditos desta rainha, depositamos aos seus pés, nossos agradecimentos e pedimos ao Santo Anjo do Senhor nosso Zeloso Guardador que te ilumine e te cuide em braços amorosos por todo o sempre, assim como fizestes conosco, enquanto pudestes.

Bsb, 19/dezembro/2012

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A FORASTEIRA



By Mércia Dantas

Vestida de roupas luxuosas, de alta grife, murmura cabisbaixa, quase num lamento,  ao chegar numa mercearia:
- Moço, me vende uma garrafa de álcool fiado?
Do outro lado do balcão, o dono olha aquela jovem, tão bem arrumada e intrigado com o pedido, sem pestanejar, responde:
- Aqui nesta cidade não se vende fiado não, moça. É tudo no dinheiro.
As lágrimas assomaram-lhe aos olhos, abriu a bolsa e mostrou a identidade, o homem não se abalou. Ela resolveu então propor uma troca. Tirou a aliança de ouro da mão esquerda e disse: fique então com minha aliança até eu arranjar o dinheiro.  Ele resolveu confiar o produto e entregou a garrafa de álcool.
Deve ter ficado com pena, ela estava grávida.
Ela saiu depressa pra acender o fogareiro com o álcool e fazer a primeira e única refeição possível naquele dia:  sardinha com pão. Mais nada!
Há poucos meses, vivia numa casa de frente pro mar, com três empregadas e onde se faziam jantares à base de lagosta regada a bons vinhos franceses.
Mas, ela teve que partir, deixar seu lugar, aprender com o mundo.
Vivenciou extremos, teve que aprender com a indiferença, a diferença.

Bsb, 21/jan/2013