quarta-feira, 20 de novembro de 2013

LURDINHA


By Mércia Dantas

Lurdinha circulou em minhas lembranças de adolescente há pouco tempo. Estudamos na Quarta Série Ginasial do Padre Miguelinho e era alguém bem diferente. Menina pobre, mais do que eu, sapatos rotos, meias e blusa encardidas, um olho meio “troncho” sempre apontando para outro lado, mansa, o andar de uma senhora de idade, lembrava minha avó. E era preta, ritinta, cabelos pichauim, calada, sempre sozinha. E era diferente não pela cor, não pelos cabelos, não pela simplicidade, mas por seus ideais: queria ser professora, não matava as aulas. As demais amigas, muitas da Cidade Alta, algumas ricas, viviam o mundo de frivolidades da juventude, as novidades da moda, os namorados, a descoberta da sensualidade, os decotes e roupas coladas como a querer mostrar os peitos empinados pelos soutiens emborrachados. Lurdinha não tinha soutien, usava combinação, com certeza feita em casa, como era comum na época. Nas rodas das fofocas elas estavam sempre lá, Lurdinha não. Nunca era chamada, era como se fosse um ser invisível, como se não existisse. Hoje eu entendo bem o que é isso, lendo textos de amigos. Levava broncas do chato professor de Desenho Geométrico que não admitia que sentássemos encurvadas e arrastássemos cadeiras, muitos menos “rebolar” borrachas de uma aluna para outra, coisa que a Lurdinha fazia sempre. Chamada de atenção na hora e Lurdinha era a preferida dele, para censurar. Coitada, já sentava no final da sala, ninguém conversava com ela, nem eu, apesar de lhe dispensar uma certa ternura.  Chegou o final do ano e eu era craque em desenho, Lurdinha não. O tempo regulamentar era de 1h30 e Lurdinha sentou-se ao meu lado e em dado momento, olhou para mim, com aqueles olhinhos tortos, como a suplicar: me ajude! Num impulso, falei baixinho, me dá tua prova. Troquei com a dela e fiz todos os exercícios, destrocamos e a sirene tocou. Não consegui fazer a minha, fui reprovada. A escola tinha mudado o tempo para as provas e não nos avisaram. Mudaram para apenas 40m e não mais 1h30, tempo suficiente para fazer as duas. Lurdinha passou, eu tive que repetir o ano. Nunca mais a encontrei, não sei da sua vida. Hoje eu gostaria de saber dos caminhos daquela menina, se ainda vive. Tem nada não Lurdinha, aquele professor merecia, você merecia passar. Afinal, quantas privações você não deve ter passado pra frequentar aquela escola, quanto chão não terá andado pra chegar lá, seus sapatos denunciavam isso, a gente nunca ligou. A gente nunca pensou que talvez aquele leite americano com pão da merenda fosse o único do seu dia. A gente nunca lhe viu e hoje quero te pedir perdão, não porque resolveram comemorar um dia que sou totalmente contra, mas porque lembrei de você e faz tempo que queria registrar isso, que você foi importante na minha vida e que teria ficado mais gente e mais humana se tivesse sido sua amiga e trocado figurinhas como fazia com as outras. Hoje penso que talvez eu olhasse pra você e visse a mim mesma, apesar de bem vestidinha e tudo o mais. Eu também fui “mal vista” na própria família, por uma avó loura de olhos azuis que nunca me deu um abraço, pelo irmão que me chamava de “Nega Zulu” quando brigávamos, fui a “lerelere” da casa, serviços pesados todos eram-me incumbidos. Não me ensinaram música, meu maior sonho. Acho que de tanto olhar para o céu e conversar com Deus, acabei ficando branquinha como aquelas nuvens que tanto apreciava desde meus tempos de menina. Ou será que fiquei azul? Sei lá, na verdade isso nunca importou, nem importa. Mas que eu senti uma saudade danada de você hoje, eu senti. Um beijo Lurdinha!


Bsb, 20/11/2013 

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